Um dia destes o Joaquim, nobre operário da construção civil, seguia o seu percurso normal para casa, era de noite, e tinha abandonado o local de construção de um prédio que já tinha toda a estrutura de Catorze andares montada, apesar de ainda só possuir cimento e aço, portanto o esqueleto do produto final, iluminado pelos holofotes de luz azul-esbranquiçada e acompanhado pelos guindastes que nunca ninguém sabe muito bem como aparecem, coisas enormes com vários tamanhos, imponentes na paisagem de qualquer centro urbano. Adiante. Chovia e fazia bastante vento, daquelas noites frias e demasiado aborrecidas para que o Joaquim se importasse com mais do que o passeio, ainda para mais a ainda mais aborrecida calçada portuguesa, pedra solta ali, buraco acolá, uma poça, salto e já está, calças ensopadas, sapatos inundados como barcos afundados num oceano de água citadina, cinzenta escura como o breu do céu da noite!
Estava perto de casa, era só subir mais Trezentos metros de uma rua com uma inclinação desumana
"Ah grandes construções urbanas, operários ali, pois, operário só precisa de casa para dormir, não precisa de uma casa plana, paredes secas e espaços amplos, e de que me queixo, a culpa é minha."
"É?"
"Quem está aí?"
"Quem pergunta aí?"
"Joaquim de Almeida e Trocos da Beira, operário de profissão, homem da monção, como pode muito bem ver! Mas eu é que não o vejo/a"
"Ora pois, é natural, talvez se olhasse para além das suas botas alagadas pode-se-me ver"
"Para onde devo olhar então? De onde vem a sua voz gentil e desafogada neste dia bastante afogado?"
"Bem logicamente não vem do passeio, tente olhar por ventura para os seus lados."
"Não vejo ninguém, onde está?"
"Talvez eu não seja alguém, ou talvez você, Joaquim, é que não é ninguém."
"É... Talvez não seja ninguém, mas aqui estou eu, e você aqui não está. Vá gozar outro!"
"Ora, não o estou a gozar, você apenas disse que não viu ninguém, e para você, alguém, é necessariamente algo que se assemelhe a si."
"Evidentemente, você então não é semelhante a mim, no entanto fala como eu, alguém você é."
"Diga-me Joaquim, porque não falam os cães?"
"Pois meu caro/a, eles ladram."
"E já ouviu alguma flor ladrar, miar, mugir, guinchar ou apenas as viu contemplar o tempo, como se dele não se apercebessem?"
"Pois claro que não, as plantas são só...plantas, não são animais, não necessitam de comunicar."
"Pois claro que... Porque pensas tu Joaquim, estar certo à cerca disso?"
"Porque sim. Não me tentes enganar, estás prai escondido debaixo de alguma pedra da calçada e a gozar com a minha cara já bem molhada, o meu consolo é que deves 'tar tão molhado como eu!"
"Dá-te prazer, Joaquim, que alguém que possivelmente te engana, sofra pelo menos em quantidade igual à tua? Já agora, não estou molhada, e estou sim debaixo de uma pedra, mas essa pedra é apenas um desnível no muro, e isso abriga-me da forte tempestade"
"...Aqui apenas se encontra uma Madalena... Queres que eu acredite que tu és esta Madalena debaixo desta pedra, num muro, numa noite de chuva e vento? Devo estar a ficar doente."
"Não meu caro, se te aproximares poderei comprovar-te."
"Como?"
"Segredarei ao teu ouvido, certamente não ouves um sussurro de alguém que não esteja
próximo, isso comprovará que a minha posição é esta que aqui vês."
"É apenas uma armadilha, bem vou-me embora."
"Joaquim, não queres ouvir um segredo de uma pequena e frágil Madalena, que desde que brotou aqui ficou?"
"E o que ganho com isso?"
"Bem nada de especial, mas talvez pudesses passar a ser Joaquim de Almeida e Trocos da Beira, contador de histórias de plantas, em vez de operário e homem da monção."
"...Que ridículo"
"Talvez, mas não foste tu que disseste que eras o culpado de não passares deste bairro desnivelado?"
"E agora serei o culpado de cair numa armadilha tão óbvia como esta, mas então vamos, conta-me lá um segredo..."
Alguns anos depois, Joaquim chegou a casa, depois de um dia muito longo e exaustivo. Entrou pela porta principal, chamou o elevador e subiu até ao Décimo Quarto andar, abriu a porta e entrou, tirou o seu casaco, descalçou os sapatos e foi à sua ampla varanda regar as plantas.
Of Swords
Há 1 ano