
Quase em casa e um frio cortante.
Estou quase a chegar, mas ainda estou algo longe.
Pergunto-me porque não levei aquela blusa extra de manhã, mas isso agora já não importa muito pois não? Especialmente porque vejo uma marcha funerária e aposto que o frio que eles sentem debaixo de todos os trajes negros é cem vezes maior do que aquele eu sinto, apenas disfarçado pela comunhão de pessoas que o pobre defunto reuniu em volta do seu julgamento final.
O aparato segue por um cruzamento, e mais uma vez denoto um policia sinaleiro, lembram-se daquele que andava de roupa interior? Esqueçam, este veste de branco, é o seu traje coloquial enquanto marca o ritmo dos condutores perplexos com o que vêm. Buzinam "Sai da frente!", "Sua besta!", "A tua mãe isto e aquilo!", outros mais passivos esperam a sua vez e entram numa melancolia própria de um cortejo funerário. O herói da nossa história, o pobre prior faz o que pode para ignorar as normalidades de um dia de trabalho, na passada Quinta o condutor que insultou a sua mãe veio ao seu confessionário relatar um pecado, tinha consumado uma relação exterior ao seu casamento, encolhe os ombros e deixa-o passar, o nobre condutor retribui com a força da sua buzina.
A manhã até tinha começado bem para este prior, um beijo carinhoso na testa da sua mãe enquanto saia de casa. Olhou para a agenda e não sentiu qualquer tipo de surpresa ou stress, afinal a escolha que tinha feito à Vinte e Cinco anos atrás batia certo com a sua ideologia, logo o funeral que estava agendado para as Treze não o assustava, fazia um por semana, mais ou menos. A caminho da igreja cumprimentou a senhora Maria Agostinha, "Bom dia senhor prior", o prior retribuiu a simpatia, mais à frente foi a senhora Maria José, "Bons olhos o vejam!", mais uma vez a retribuição devida. Tudo normal e agradável.
Por volta das Quinze e Trinta e Três acabava de fazer a passagem de um verso do livro sagrado, enquanto o caixão batia finalmente no fundo da cova. Aquele era o momento mais triste de toda a marcha funerária, era o momento em que se fazia silêncio, um silêncio que podia ser quebrado num segundo ou em Trinta minutos, era o momento de quebra do prior que se afastava da zona para perguntar a Deus pela Quinquagésima vez este ano "Porquê?". Neste desconforto pegava no cogumelo mais próximo e levava a realidade ao encontro da ilusão, via figuras fantasmagóricas, umas mais simpáticas que outras.
No meio da sua overdose encontrou um cavalo com quem teve um dialogo breve, depois encontrou um esquilo no topo de uma árvore que se recusava a largar a sua apetitosa noz para vir ter com o prior. Continuou, não sabe bem a procura do quê mas lá ia ele vagueando pelo bosque, sim de repente estava num bosque, não sabe como e nem pensou nisso, mas é evidente que cavalos e esquilos falantes só existem nos bosques, aqueles mágicos. Procurou o Bambi gritando desesperado, não sabe porque estava desesperado e mais uma vez nem pensou nisso, mas continuava a chamá-lo cada vez com mais força até que a sua voz quebrou, o Bambi por seu lado não apareceu, talvez só exista mesmo nos bosques encantados da Disney. Caminhou afónico até encontrar um lobo, ou seria um cão? Não sabia destinguir pois a sua visão oscilava entre as cores azuis e vermelhas, enquanto tudo ondulava como se estivesse dentro de água. "Lindo menino" dizia o lobo-cão, "Mas que raio de sitio é este" pensou o prior embora não tenha conseguido sibilar qualquer palavra. "Vêm comigo" diz o cão "Vamos ser muito felizes e lá em casa vais encontrar a Maria, a nossa humana". Esquecendo a nobre presença que fora um dia e movido por uma estranha força o prior aceitou e seguiu o lobo-cão.
A dada altura algo ainda mais estranho acontece, agora as cores da sua visão já não são azuis e vermelhas mas rosas e verdes, a sua audição perde valor e impõe-se um assobiu surdo. Cai sem forças e sem folgo, o seu novo dono faz de tudo para o levantar mas ele apenas percebe algumas palavras que o lobo-cão diz "Ey!... vamos... bem... te... o meu... chores...". Sente uma raiva súbita e ataca o lobo-cão, não sabe porque o fez, mas apenas o fez e esta feito, agora pensa embora com pouca clareza sobre o que fazer com o corpo, escava um buraco enquanto luta contra a fraqueza e deita-se lá dentro, entre um Pai Nosso e uma Avé Maria pede ao senhor que apazigúe a sua fraca resistência ao vicio e à viagem tão fácil aos seus domínios, através de um simples fungo de horta.
Já não vê mas ainda ouve os pássaros das árvores e ainda sente as formigas a caminharem sobre os seus pés, demora algum tempo a respirar, depois demora um pouco mais, e um pouco mais, e um pouco mais, até que demora tanto tempo que não teve tempo suficiente e deixa de respirar, o último suspiro já foi e o sonho maravilhoso chega ao fim entre uma cama de hospital e um ventilador.